segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A CABO DE REMO EM MONTARIA A FIM DE CONHECER O LAGO (3).

Trapiche de Cachoeira do Arari, rio Arari
... e a lancha de costume não veio naquela vez rebocar ninguém rio acima, pois era dia de eleição. A gente não sabia nadinha: "Que fazer agora parado na beira à espera do reboque que não vinha mais? Voltar pra trás ou seguir adiante se fosse capaz?". Sem pestanejar, desamarramos a montaria e metemos remos n'água e só fomos parar no velho trapiche municipal de Cachoeira do Arari, todo feito de grossos esteios e pranchas de madeira de lei. Não era exatamente assim, em concreto armado, como se vê na foto. Nem existiam embarcações a motor como essas, exceto raros barcos-motor de transporte de gado, como o imponente "Perge", do coronel Antero Lobato, por exemplo.



A FAMOSA CACHOEIRA À PRIMEIRA VISTA

Naquele tempo, se eu soubesse e meu entendimento desse, teria imaginado que o sol foi sentar no Araquiçaua que nem um rico pajé-açu em toda sua glória, um pouco acima do furo das Laranjeiras e do Porto Santo, para atar sua rede vermelha, dormir e sonhar com a Terra sem males até o cantar do galo mágico fazendo raiar o dia. 

Antigamente, numa hora daquelas, o pouso do sol desfeito em rubros clarões era azo perfeito pra alguma tapuia sonsa, tendo seu bem querer distante, ir lavar o xiri, lá dela; com água de cheiro e fazer a reza brava (dita oração do Sol) a fim de amarrar o companheiro dela a seus pés, chamando o amado em pensamento pra sua ilharga. Ninguém já não sabia mais destas coisas tamanhas do passado e poucos sabem hoje em dia que este lugar foi baliza da saga do tremendão Tupinambá na conquista da utopia selvagem, dita a "terra sem mal" no Grão-Pará. Uma civilização solar no rio das Amazonas. Isto tudo que habita o fundão da alma da Criaturada grande de Dalcídio, masporém esta gente não sabe que sabe... 

O rio ficou de repente escuro que nem breu, tal qual a lenda da primeira noite do mundo... Grave foi a decisão, naquela hora à boca da noite, de empurrar a "Favorita" ao encontro do destino na reponta da maré rio acima. Sem uma luz, zinha que fosse, pra guiar a gente naquela estúrdia viagem ao Lago. Vadico segurava o jacumã na popa da canoa e eu remando na proa não dizíamos uma única palavra. A canoa paresque crescia nas trevas e pesava demais da conta aos dois remos, como se fosse um feio batelão, com seu carregamento de mercadoria e medo fugindo da senzala e tortura no Viramundo nos tempos da escravidão. 

A bonita "Favorita" perdia suas cores ainda cheirando à tinta nova, roubava dos dois remadores seus quatro ouvidos e quatro olhos arregalados querendo divisar alguma paisagem debuxada a carvão no muro da escuridão pelas margens do rio. Um frio vinha do fundo das águas engelhando a pele da gente e ia congelar a espinha. De forma que, cada remada com sustância, era fonte de energia e calor que vinha do interior da gente passando pelos braços para se aconchegar ao coração. 

Pelas veias do remador - rios de sangue no seio do rio-vida - navegavam cardumes devorados em caldo, pirão de farinha e pimenta malagueta no molho de tucupi: que nem a lancha-vapor de reboque consumia florestas transformadas em acha de lenha para consumar cada viagem... Cada viagem era só uma viagem no curso da única e verdadeira viagem. Talvez, já não me lembro muito bem, naquele transe fluvial arariuara antepassados canoeiros do camarado Vadico assumiram o comando da montaria chamada "Favorita". Certo como um fuso a gente iria chegar, na vez e na hora, no porto da Cachoeira. Até aquele ponto, malmente, o piloto conhecia a navegação. Dali em diante, rio acima, paresque tudo seria novidade e descobrimento...

Por favor, não esperem deste tímido remador do rio da memória um relato lá muito exato com a realidade, como num diário de bordo ou carta de navegação. Agora, paresque por mágica, o remo de pitaíca se transformou em teclado de computador. O rio e a canoa se tornaram a mesma coisa numa estória fluvial que a fadiga e o sono também contam e levam a um lago de subjetividade.

O Rio Arari: rio das araras
 
Para os brancos, na verdade, a Ilha Grande de Joanes, ou Marajó não começou a ser ocupada antes de 1680. Porta aberta da conquista da ilha grande, todavia, o Arari foi palco da cobiça dos guerreiros Tupinambás e cenário de guerra entre as mais velhas etnias Marajoaras e invasores Aruãs, cerca de 1300. O nome "arari", provavelmente aruaque, significa "rio das araras" (do Aruak, 'ara', arara por onomatopeia; e 'ari', rio). Prova de conflito hereditário entre povos indígenas que habitaram a região antes da ocupação e colonização portuguesa. Toda viagem ao Arari deve ser, doravante, uma iniciação ao pensamento descolonial com paragem obrigatória no trapiche de Cachoeira e visita ao museu do Gallo, casa de João Viana e ao chalé de Dalcídio Jurandir tombado ao chão e levantado pela memória por obra e graça do ciclo Extremo-Norte...


No fundo de suas águas barrentas jaze a velha "cachoeira", simples salto no fim do estio; enterrado pelo assoreamento. Já não existem araras no rio, a árvore Folha-Miúda que poderia ser árvore símbolo da paisagem cultural daquele rio histórico; também foi derrubada com a devastação da mata ciliar fazendo acelerar a erosão... O velho Arari tem nascente no lago do Arari pela ponta sul e desce serpenteando através dos campos. Segundo a teoria do índio arariuara, na "Notícia Histórica" (1783), existiam antigamente muitas cobras grandes e medianas no Lago e veio o maior verão que já houve nesta ilha. Quando o sol lambeu a última gota d'água e a lama quente começou a secar, as cobras todas meteram força procurando o mar e foram abrindo a terra em frente, rebolando e se contorcendo... Foi assim, que as cobras grandes abriram o Arari com tantas voltas, e as menores abriram os igarapés.

O Lago resiste em todos os sentidos, masporém está morrendo lentamente, já faz tempo: a bem dizer, desde o tempo do Barão de Marajó, no governo da província do Pará, em fins do século XIX. Quando ele contratou engenheiro português pra apresenta projeto de esgotamento das águas da chuva, como os canais das Tartarugas e dos Mocoões. Talvez tivesse sido melhor chamar engenheiros holandeses, que longe de querer dissecar o que o assoreamento de igarapés e a colmatagem dos lagos já estavam a produzir na lenta e inexorável morte da natureza anfíbia; poderia trazer a experiência dos verdes prados da Holanda, com seus diques, moinhos de vento e canais...

Ainda hoje não se viu o caminho natural da engenharia dos índios, com seus tesos e aldeias suspensas sobre campos alagados... O Alto Arari se reparte entre Santa Cruz do Arari, Cachoeira do Arari e Ponta de Pedras. A vila do Jenipapo e a fazenda Menino Jesus no município de Santa Cruz do Arari ficam à margem direita e na esquerda as fazendas Tuiuiú, Arari, Santa Maria e outras do município de Cachoeira do Arari, baixando o rio ele se divide entre este último município e Ponta de Pedras estreitando-se e se tornando sombrio e lodoso para se alargar novamente no Baixo Arari, onde corre dentre margens altas de pedras e desemboca na baia do Marajó, deixando à direita a ilha de Sant'Ana e à esquerda a boca do Caracará.

O Arari conta com um curso de 120 quilômetros de extensão. Era isto e mais alguma coisa do tamanho de uma maré, do furo das Laranjeiras até o igarapé Bacurituda; que os remadores da "Favorita" tinham que enfrentar, ida e volta. Ou seja, qualquer coisa, perto de 200 e tantos quilômetros a cabo de remo. Nada mal pra dois "goiabas" novatos. Se aquele rio falasse, como de fato ele fala a quem tem ouvidos de escutar e olhos pra ver direito; como o O Nosso Museu do Marajó ensina; a gente saberia quanta riqueza e quanto fortuna amealhada a cabo de remo, por ali, passou a cada remada... E quanta estória sonegada, daquelas tantas que viajavam a bordo de barco, canoa ou igarité.


Eu não podia acreditar! Chegamos em Cachoeira alta hora da madrugada. Muito cansados. O frio vinha do fundo do rio. Vadico encostou a canoa ao pé da escada do trapiche e foi verter água em terra, paresque, aproveitando pra se informar melhor sobre o que vinha pela proa... Passei para a popa, puxando uma manta sobre os ombros e arriei a aba do chapéu de palha sobre o rosto a fim de chochilar um pouco. Até hoje sou mole pra aguentar sono... Ouvi um caboco chegar dizendo ele, assim: "hê, meu tio, me atravesse pra'quela geleira lá fora...". Fiquei deveras admirado, nunca um adulto me tinha chamado de tio. O tratamento de "tio" é respeitoso entre a gente ribeirinha. Prontamente, o caboco desatou a canoa e deu uma empurrada com um pé enquanto com poucas remadas já o deixei a bordo da geleira ancorada no rio. Havia umas tantas quantas geleiras subindo ou talvez já de baixada com carregamento de peixe. Embora eu contasse dezoito anos de idade incompletos, meu sentimento ainda era de um curiminzão de pouco mais de quinze ou dezesseis anos de idade... Quando voltei a encostar a canoa no trapiche, estava pronto para ir na popa. Vadico desceu de terra e passou para a proa. Prosseguimos a viagem. O dia ainda estava longe mas a gente não queria perder tempo por nada deste mundo.

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